Dia desses, com a geladeira dando eco de tão vazia, fui até o hortifruti para compra de mantimentos para minha subsistência. Por lá chegando, encontrei com um velho conhecido. Cidadão de meia idade, bem apessoado. Fora meu colega na época de colégio. Trajava um belo terno, com a gravata levemente desabotoada, pisantes elegantes e uma cabeleira de dar inveja a galãs de Hollywood. Já eram para lá das 19h. Chamou-me a atenção o fato de a criatura estar cercado por três beldades. Moças bonitas. Duas vestiam roupas de ginastas transadas e a outra parecia uma executiva de importante multinacional.
Fui as compras, mas não perdia de vista o quarteto. Nas minhas não discretas alusões, chamava-me atenção o fato de que meu colega parlava, enquanto suas espectadoras riam e brilhavam de curiosidade. Meu contemporâneo parecia um professor lecionando a aplicadas acadêmicas. Um maestro, que regia uma orquestra diante de uma perplexa plateia. Não ouvia o recital. Entretanto aguçava-me a curiosidade as dissertações do mancebo. Finda minha tarefa, encontrei o gentil, jantando um salubérrimo prato de salada da casa. Perfiz um cumprimento de maior intimidade e fui convidado para sentar-se em sua companhia, acompanhando-o em sua refeição.
Logo foi ele me adiantando que se divorciara recentemente. Casamento longevo, com dois frutos demasiadamente amados. A relação com a ex-cônjuge transcorria sem mossas indeléveis. Dotado ainda de certa virilidade, indaguei-o sobre a nova rotina e eventuais novos relacionamentos. Perguntei por onde tem saído e quais seriam novos points noturnos. Ouviu minhas indagações com uma risada sarcástica de canto de boca. Disse-me que estava mais desatualizado sobre o assunto do que a última audição de Danúbio Azul. Fixou os olhos cerrados e passou a me explicar sobre seus estratagemas para se manter sempre acompanhado, ou melhor, bem acompanhado.
Serenamente foi desenhando sua tese. Categoricamente falou-me que essa história de programas noturnos para novas conquistas é um desastre. Hodiernamente, como solteiro de meia idade, passou a ter um olhar arguto para minas poucos exploradas. Logo se apercebeu que o hortifruti, as segundas-feiras, após às 18h, era mais abastado do que Diamantina na época do Brasil Colônia. Passou a estudar a diferença de espinafre para chicória, como se identifica um abacaxi doce e conhecer de receitas light nas aulas de culinária que assistia na internet. Ademais, agregou aos seus conhecimentos citações da filosofia de Nietzsche. Passou a dominar assuntos sobre identidade de gênero, emancipação feminina, racismo estrutural e patriarcalismo. Batata, disse-me, o arauto. Indaguei-o sobre as dificuldades temáticas e se acreditava nos valores ora apregoados.
Nesse momento, a risada de canto de boca transformou-se em uma sonora gargalhada. Baixando a voz, perguntou-me se conhecia Palhares. Leitor de Nelson Rodrigues, acenei-lhe positivamente. Então, disse-me o filósofo.
“É isso! Sou o Palhares do século XXI. O canalha honesto. Não creio em nada dessa patacoada. Preocupo-me com a fome. A fome de meu semelhante é o que me atormenta”
Porém, alertou-me apercebi-me do fato que esse superficial repertório é necessário para me conferir ares de galã pós-contemporâneo e intelectual.
“Desde então vou divagando sobre esses temas e com isso não estive em momento nenhum em miséria sexual, desde que me separei”.
A hora já se passava. Despedi-me da nova celebridade e segui meu caminho para casa. Nas minhas reflexões, pensava, com é atual Sir Nelson Rodrigues.