Na tarde de ontem, em despretensiosa leitura, escorriam em meus olhos e pensamentos a biografia de uma personalidade que viveu entre os séculos XVIII e XIX. Histórica de vida riquíssima de uma das mulheres mais influentes de sua época: Josefina Bonaparte. Companheira do soldado, cônsul e imperador. O percurso de seu itinerário é composto de momentos marcantes e memoráveis. Dramas, experiências e situações inusitadas oportunizaram-na uma trajetória controversa e paradoxal, tornando-a uma grande personalidade de sua época. Não ingressaremos aqui nesses meandros e detalhes. Recomendo a leitura.
Napoleão Bonaparte se tornou imperador em 2 de dezembro de 1804, na Catedral de Notre-Dame, em Paris. Na mesma cerimônia, Josefina também fora coroada. A cena é claramente visível na célebre pintura de Jacques-Louis David, realizada em 1807. Na presença do Papa Pio VII, cardeais, embaixadores, familiares e militares, o corso levanta a coroa para colocar sobre sua esposa, a primeira Imperatriz da França, Josefina Bonaparte. A obra de arte, no entanto, não retrata o relacionamento delicado, mas apaixonado, entre Josefina e Napoleão. Sua épica biografia traça sua transformação. Uma jovem impressionável, que se afigura uma esposa sagaz e compassiva. A imperatriz confidente, e uma das mulheres mais sofisticadas e poderosas da história. Sua vida se consolidou em um conto arrebatador de amor e perda, intriga política e revolução durante um dos períodos mais tumultuados da história europeia.
Neste trajeto pelas folhas que se consumiam com a minha leitura, deparei-me com o seguinte momento: proclamado imperador, Napoleão escolhe a águia e a abelha como símbolos dessa nova era da França. A águia objetivava traduzir a sua nobreza, majestade, liberdade, agilidade e outras virtudes, associando-os a sua coragem e força. As abelhas traduziam a ordem, a diligência, a lealdade e a cooperação do povo francês, ao seu soberano. Josefina, como imperatriz, opta pelo cisne como símbolo de sua figura. Por quê? Na sua obra “Joséfina, Le paradoxe du cygne”, o autor Pierre Branda esclarece a opção da protagonista. O biógrafo consigna em seus relatos, a ênfase nos amores e excessos de Josefina. Sua notável capacidade de sobrevivência, seja um primeiro casamento fracassado, tempo na prisão revolucionária, quase execução, esterilidade e o divórcio imperial. Retrata uma mulher forte, independente e implacável em sua busca pelo poder e independência. Hábil em suas atividades, conhecedora de Napoleão, manipuladora e vaidosa. Por que o cisne?
Josefina justifica sua escolha, através das impressões. O animal símbolo é visto por todos como um ser belo, elegante, altivo e majestoso. Representa seu esplendor, deslizando sobre as águas, inobstante ninguém vê a força que ele faz para manter tal aparência. Embaixo da água, a ave sofre e perfaz uma força abissal para manter sua exterioridade. A dificuldade para se manter como é visto, oculta-se. O cisne veste a capa de seu personagem social, escondendo suas agruras. Apresenta-se de forma diametralmente oposta à sua realidade. Ele posta, com filtros. Retrata o que não vive. Seu observador só enxerga o que o bichano resolve mostrar. As dificuldades são sublimadas através de seu estereótipo. Ele não é o que se apresenta.
A escolha da imperatriz é atemporal. Josefina não tinha a menor ideia de como o mundo estaria na pós-contemporaneidade. Ela não conhecia o fenômeno das redes sociais, mas já denunciava uma prática inerente ao ser humano. A mais célebre figura da Martinica fora uma visionária. Denunciou-se como uma personagem. Compreendeu ser estrutural a infelicidade da espécie. Desnudou a camuflagem da representação. Fez-se humana. Fora humana. Mostrou-se viciosa e virtuosa. Um paradoxo. Uma lição. Não se escondeu, ao contrário, revelou-se. Não ambicionava a busca esquizofrênica da felicidade. Viveu, apenas isso.