Antes de buscar fôlego e retirar lágrimas adianto-lhe que fui o médico da Melissa (Mel). Dizem por aí que sou especialista em doenças raras e essas baboseiras que os ponteiros da vida “zombam de nós” quando temos algum revés brabo. Não sou coisa nenhuma; me chamo Marco, pai de João e Bento. Acadêmicos e médicos acham o máximo, enquanto eu desprezo completamente “truques” para “egos”. Trocaria por… deixa passar que falo.
Creio que Deus colocou-me como uma espécie de “diagnosticita informante” em tornar o trágico mais leve. Uma tipologia de abutre bonzinho, como nos filmes infantis. Isso dói; não é à toa que já estou… isso cansa, não é para menos que estou… isso dói, mas faço arder em mim que passar para a Mel.
Eis que adentra em meu consultório uma linda menina com olhos azuis, pilotando uma cadeira de rodas com acoplador para tornar a entrada de ar nos alvéolos menos sádica e, creio, um comunicador. Me apaixonei, mas como esse tal adjetivo que recebo dos colegas, indubitavelmente, comecei a reparar nos detalhes da pintura e o contorcionismo que a doença causa. Fraqueza muscular nas pernas, nos braços, na fala, além de dificuldades para deglutir saliva e ligeiro desconforto pulmonar. Cruzo o consultório, empenho em colocar minhas mãos sobre os seus joelhos e mansamente falo:
“Filha, me conta, porque vieste de tão longe para ver o seu tio?”.
Nessas horas a gente pensa em tudo: religião, sonhos, finitude, tempo e, principalmente, no amor. Não poderia uma jovem daquela idade ser com Esclerose Lateral Amiotrofica. Fato é que estava com a dita cuja.
“Vim de longe ser sua paciente e conhecê-lo”, disse a minha pequena. Retruco: “logo eu, merecedor de você, com esses tênis de corrida e calças puídas?”. Ela retorna: “sim, quero que você seja meu”, debocha. Não aguento: “mas eu não estou à venda, menina?”.
Enfim, ela me comprou com o coração. A Mel era falante e valente; tanto que subiu rápido e, lá de cima, já me pede um capítulo de livro.
“Que danada, penso eu. Nem acabei de digerir sua saída daqui, no meio de um monte de pessoas esquisitas e estás com meu nome na cachola? Sossega um pouco agora que estás curada! Eita povo para querer tudo para ontem!”.
Anjos como a Mel, quando daqui partem não me deixam triste. Fato é que, realmente (muito realmente), fico feliz. Não encaro a morte como um quadro negro, tampouco a finitude. O céu precisa de coisas mais importantes e audaciosas para fazerem barulho aqui na terra. As estrelas precisam de seres humanos para ilumina-las todas as noites. Sendo assim, a Mel foi escolhida para acender algumas dessas lamparinas.
O que queria dizer nesse capítulo que, antes de partir, Mel, você me pediu um capítulo de livro. Viu? Seu médico é resmungão, brabo, chato, mas te ama. Ele assim o fez minutos depois de sua mãe me pedir; largou tudo e fez. Por que? Não temos o amanhã. Podemos dizer que te amo como todos os peixinhos de um oceano. E por falar em oceano, quando vieres por aqui, curta a praia! Estavas com baixa de vitamina D. Te amo muito, com enorme carinho do mundo!
Do seu médico Marco Orsini.