Uma parte de mim não alcançou com êxito todos os setores que a sociedade nos cobra diariamente. Durante minha infância e adolescência morava no “Mundo da Lua”, basicamente em outro lugar que não aqui. Gostava de coisas pontuais como torcer pelo Flamengo, praticar jiu-jítsu, andar de bicicleta, ficar sozinho e ler. Lia muito; algumas vezes acordava assustado por encontrar-me abraçado e salivando nas letras. Também era amante de pescar cocorocas no barco do meu avô na praia de Charitas. Parte de minha infância foi ao seu lado… que bom.
Algumas vezes ficava agitado; na maioria ao usar esteroides para uma moléstia auto-imune que rendeu-me alguns traumas e lembranças de momentos ruins como, por exemplo, jogar futebol de botão no chão do Hospital Pedro Hernesto para uma biópsia. No fundo era muito inquieto por dentro; quase um vulcão (mas não aparentava). Não por maldade; só não sabia lidar com aquele sentimento. Meu médico e depois professor de Medicina da UFRJ, Dr. Ruy de Souza Rocha, deixava-me preocupado durante as bilhões de avaliações. Enfim, cresci com essas cicatrizes e rendilhado de inúmeros defeitos psíquicos e repetitivos que todo mundo que lê essa crônica também possui.
Mas cresci, sabendo que teria que conviver com minhas limitações e ser disciplinado para almejar algo que me prendesse por aqui como um peixe no final de um anzol – a Medicina. Hoje certamente receberia um diagnóstico de TDAH, Austimo, Asperger, SPA, TOC, Depressão (não fugiria disso)… estaria fadado à uma dessas coisas.
Se procurar eu acho, mas não me interessa. Aulas da escola? Terrivelmente chatas, mas me dedicava, pois meus pais possuíam bolsa de 70% do ensino básico ao médio. Eu não poderia reprovar.
Durante essa crônica, passa por meus miolos uma imagem: minha mãe rodeada de papéis sobre uma máquina de escrever na época do Jornal do Brasil. Antes de vocês ousarem críticar Bety, saibam: essa foi a maior paixão da minha vida junto com Maria Amélia. Bem, voltemos a imagem da máquina.
“Mãe, tirei nota 10 em tudo no primeiro bimestre do colégio!”.
Resposta de Bety: “que legal filho, legal, bom, legal”.
No fundo ela sabia que eu, por alguma ajuda divina, daria certo em alguma coisa. Também existe imensa possiblidade que, naquele momento, ela não estivesse pensando em nada. Quando Bety escrevia, até os últimos dias dentro de um CTI, sua capacidade de concentração era absurda. Nunca vi igual na minha vida. Não lembro de estudar com minha mãe, mas vovó não dava colher de chá. Meus defeitos? Vários. Perder tudo era e se mantém sendo o nevrálgico; desde material escolar, casacos, canetas, chaves de carro, carro, remédios, camisas, celular e carteira (nem ando mais). Eu hoje traço uma teoria sobre isso:
“Só perco o que a traça rói; nada do que perdi e perco tem valor para mim. Perderia mil vezes de novo”.
Interessante e marcante fora o dia em que cheguei atrasado numa aula. O professor me olha e diz: “rapaz, não tens vergonha?”, apontando para o relógio e com cara de cão. Eu não tinha chance de me defender, mas estufei os peitos e disse: “mestre, eu tenho um carro caindo aos pedaços e ainda moro em Maria Paula”. O professor me olha e pergunta: “Onde em que raios é isso de Maria Paula?”. Retruco: “Quase chegando na Estrada de Maricá; num condomínio pequeno chamado de Bosque de Itaipu. Lá eu…”. Ele não deixou-me completar o vexame. Obviamente, ficou com pena e permitiu minha entrada na sala de aula.
Passados meses virei monitor dessa disciplina e grande amigo desse que já subiu; carreando grande parte do conhecimento de Saúde Publica (na verdade não gostava dessa disciplina, mas muito da pessoa dele). Enfim, fui um adolescente e jovem de hábitos diurnos. Não bebia e ainda não bebo, não fumava e ainda não fumo, não brigava e ainda não brigo, mas consegui títulos relevantes para o meu currículo oculto. De um lado o esporte com o jiu-jítsu e do outro os livros. Muitos livros, muita dedicação pelo que eu amo, muita disciplina para ser diferente, não brilhante, como médico e pessoa do bem.
Como a crônica não pode ser um capítulo de livro, tive três grandes paixões na minha vida. A primeira, minha ex-esposa, rendeu-me João e Bento Orsini; meus filhos. O nascimento e amadurecimento deles me transformou num pai antes de médico, antes de qualquer coisa nessa vida – eles são a minha constelação de puro que existe entre encéfalo e coração. Quem não conheceu minha ex-esposa ela é Maria Elisa Vianna Medici – hoje nos damos bem.
Hoje a única que é capaz de balançar o meu coração é a Jaque, mas o negócio está difícil. Fui infeliz com ela; um erro bestial… eu disse lá em cima que erro! Ela até hoje mexe comigo. Coisas do coração não é? Bem, de uma criança hostilizada por medos e intertezas estou aqui para/com vocês – vivo.
Fiz da Medicina uma maneira de tripudiar das estatísticas, pois “dizem por aí” que me tornei especialista em doenças raras; forneço esperança para os pacientes e trato.
As escolas da UFRJ, UFF e Unifesp moram no meu coração, além de quatro professores que devo muito: Marcos Rg de Freitas, Marco Antônio Araújo Leite, Carlos Henrique Melo Reis e Acary Souza Bulle Oliveira. Todos se tornaram amigos, mas o professor Marcos, diga-se de passagem, tem o meu gênio- esperto que só ele. Cuspido e escarrado minha personalidade, entretanto o “bicho” é inteligente que só ele. Me atende quando quer e na hora que quer. Também só fala de artigos e publicações. Sinceramente, eu não seria um mero médico sem a sintonia e cuidados que professor Marcos teve com minha formação. E de quem o professor Marcos era fã? Da minha mãe – uma ironia do destino não é?
“Orsini, sua mãe certamente iria para a Academia Brasileira de Letras”.
Deixo o meu afetuoso abraço para todos vocês, mas lembrem-se: eu perco carros, mas sei dar diagnóstico e tratar de pessoas e almas, ok? Eu me desorganizo, mas consigo organizar muita gente por aí.
Dedico essa crônica ao meu avô Mário Orsini. Esse é o cara que cuida até hoje de mim – no céu.