Estávamos eu e Bento voltando da terapia para a psiquê. Aproveitamos e colocamos algumas questões peculiares em dia. Tita, apelido carinhoso que o dei desde quatro apoios, evoluiu muito na escrita, no comportamento e, principalmente, na amorosidade. Não era de me beijar como João fazia, mas agora só vive pendurado abaixo dos meus sovacos; me “solavancando” para baixo, invergando-me e destruindo bainhas de roupas.
“Bento, acho que as laranjas do mercado não estão boas hoje, amigão”, disse para ele, após sentir a textura e pedir para o pequeno cheira-las .
Eis que um sujeito, um pouco esquisito recria uma suposta leitura da minha linguagem e berra como um cabrito.
“Rapaz, por que não estão boas? Senão fosse o Bolsonaro a lutar na Rússia por nós, em busca de pesticidas, estaríamos passando fome. Estão boas sim, homem! Vira vegano, então”.
Raramente falo alto, principalmente em diálogos improváveis do tipo: um livro para uma pedra. Acho que não existe comunicação viável entre pedra, papel e tijolo, no qual um se sobressai sobre o outro nas rodas de criança. Verdade é que o sujeito foi agressivo e, as vezes, a gente pode morrer pela boca.
“Meu senhor, o que tem a ver laranjas com a Rússia, o Putin, essa estória de vegano e o Bolsonaro, dentro do contexto das frutas verdes? Você está assustando o meu filho, amigão”, falei em tom de monge.
Bento me pergunta o motivo pelo qual o homem ficou bravo. Respondi que foi apenas um comentário desmesurado. O senhor, ainda estatelado com minha colocação, retorna e me pergunta:
“Desculpe, meu amigo, mas achei que fora uma metáfora contra o atual presidente da república. Foi ou não uma maneira de me instigar?”.
Ainda não tinha me acalmado com a loucura alheia, mas falei que estava tudo certo. Caminhando, pedi para ele se acalmar. Cheguei a brincar. “Eu, na atualidade, não acredito em ninguém” . Dei-lhe um sinal de está tudo em ordem e fomos bem para longe. O silêncio voltou à cena, mas, de repente:
“Eu vou matar esse cara, pô! Pensa que está falando com quem, seu velho doido?”.
Pronto, realmente o ruim pode ficar muito pior. As democracias estão morrendo e as pessoas enlouquecendo.
“E faz uma coisa de uma vez por todas”, fala um rapaz ao senhor: “sai do meu lado com essas coisas de partidos políticos misturados com cereais”.
Na certa, o dito cujo arrumou alguém muito pior que eu; um amigo dele – digamos – outro espírito de porco. Não podemos nem opinar sobre o que achamos sobre a qualidade das frutas…
Bons tempos que nas peladas de rua eram dez minutos ou dois gols. O goleiro mudava a cada rodada e o moleque que chutava a bola na casa do vizinho tinha que se virar com o portão e/ou cachorro. Às vezes atraíamos o cão para ofertar tempo do “caolho” do gol perdido buscar nossa oferenda; a bola. Também não adiantava colocar esparadrapo com mercúrio cromo nos artelhos para não agarrar não; pois deixávamos de fora; quando não despíamos a suposta fraude. Se confirmada não tinha VAR; eram os famosos “pescotapas”. E outra coisa, se ninguém quisesse ser goleiro, o regime era compulsório. Ai daquele guri que forjasse um frango. Agarrava mais uma rodada de punição amorosa.
Mas vamos falar sobre democracia. Somos colegas médicos há anos – um grupo. Temos receio, como muitos de nossos compatriotas, mesmo quando tentamos nos tranquilizar, repetindo a nós mesmos que não pode, o Brasil, piorar. Afinal de contas, embora saibamos que as democracias são sempre frágeis, como a que estamos submersos, a atual conseguiu desafiar as leis da física quântica. Estamos passando por um colapso democrático, como a tal metáfora das laranjas com a Rússia, ou sei lá o que. O que significa tudo isso? O nadir de um sistema democrático. “A democracia está infectada e não temos mais antibiótico para tal”. É assim que as democracias morrem agora: com argumentos infundados de possíveis metáforas envolvendo frutas com presidentes.
Vou falar só uma frase de política, pois é um tema que me considero bem limitado, assim como em educar futuros médicos. O paradoxo trágico de uma via comum para o autoritarismo dá-se no fato que os assassinos da democracia (sem qualquer viés ideológico) usam as próprias instituições da democracia – de forma argilosa, fina, sutil, gradual,sorrateira,lenta, morna – para mata- la. Um comentário que deixo sempre para os meus filhos, João e Bento, serve como um mantra: “até nas democracias existem regras, ônus, bônus e resultados, meus filhos. Vocês devem aprender que qualquer palavra ou ato que vai de encontro à democracia, ou a usa para achincalhar famílias, estabelecimentos e moradias, devem e merecem uma justiça dura, verdadeira e combativa”.
As leis são fundamentais para tudo no mundo e devem ser cumpridas à risca; para não sermos “falsos” democráticos.