Bacalhau à Bangu
Marco Orsini
Um amigo rugiu comigo. Disse que as crônicas estavam melancólicas e que eu deveria tomar providências internas. Olímpio Peçanha é um dos amigos que Bety Orsini me deixou e que hoje representa um “personagem” importante na minha vida. Não consigo buscar racionalmente uma definição dele – poderia caracteriza lo com um médico humano, engajado 24horas com seus pacientes. Quando ele gosta dos amigos abraça, carreia os com zelo e protege com unhas e dentes Caso contrário é um problema – também é brabo – comigo não. “Marquinho, como você está?”. Semanalmente, como um mantra, sinto me querido com o seu carinho e da Liliane. Por falar em amigos que papai do céu nos coloca no front- recebi a visita de André Regazzi Gerk; um dos melhores clínicos, de olhos cerrados. Me avaliou, rabiscou suas receitas como assim fazemos e disse me ser um prazer habitar aqui, na minha casa, mesmo que por minutos. Interessante que minha mãe tinha tanta gente que habitava em seus celulares, mas após sua partida se foram. Olimpio perdurou como um “parasita”da boa vontade – sem interesses- admiro-o. Isso me parece bonito.
Lembro-me de um Natal em que minha mãe fazia parte do Caderno ELA do Globo, mas nunca se gabou por isso- os outros sim – ela não. Como filho, posso dizer que a ela só interessava o que hoje não faz mais sentido na sociedade. Nesse dia a sala estava abarrotada de presentes e, como qualquer adolescente, mirei meus músculos reto laterais do olho (inervados pelos nervos abducentes) numa mochila de marca e comentei. “Mãe, posso pegar?”. Bety entrelaçou o sorriso e me pediu uma gentileza. “Filho, ache o telefone da loja e pergunte quanto é esse apetrecho de colocar coisas que te dou de presente, mas essa não. Pega uma folha do meu chequee vai lá”. Perguntei lhe o porquê de negar-me um presente inerte e jogado no canto da sala que seria entregue certamente para a primeira pessoa que dele tivessse agrado. Ela simplesmente respondera que presentes advindos de pessoas desconhecidas soam geralmente como sinos de interesse. “Fazem muito barulho para os olhos e um terrível silêncio e aflição no coração”. Bety os classificava como ofertas, mas eu não iria assimilar suas palavras na adolescência. “Não são ofertados de bom grado filho-existe uma estória por detrás deles – eu sei” Emudeci pela ignorância, mas posteriormente entendi o real valor da fala de minha genitora. Ela sempre teve razão. Não é a toa que o nome de sua Praça sumiu…provavelmente foi levado pela trombas d água. Virou um local sujo e desabitado. O Ipê ainda agoniza. Sem água e sem luz.
Algo que relembrou Bety aconteceu comigo há cerca de 2 meses quando, educadamente fui cumprimentar o dono de um restaurante de frutos do mar. Simplesmente senti-me ignorado e entrecortado quando iria dar-lhe um feliz Natal de longe. Só queria realmente ofertar lhe realmente palavras por detrás de minha máscara Com uma de minhas pernas combalidas após treino de jiu-jítsu e escorada em uma das cadeiras, fui gentilmente solicitado a derrear tal membro e, obviamente, passei a sentir dor (uma sensação desagradável). Imagina alguém saborear um bacalhau e sentir dor – não combina. Comi dois bolinhos azedos por ali estar, paguei a conta como Bety sempre fez e parti, para nunca mais voltar. Sobre tal estabelecimento comercial, a dona ainda parece ser uma senhorinha muito elegante que sempre afagava minha mãe. Ela está guardada na pandemia, assim como os outros idosos.
Há cerca de uma década ficou marcada em minha memória uma cena que hoje me faz valorizar os conceitos da minha mãe. Posso compartilhar com vocês ? Essa casa acima listada estava cheia e indubitavelmente, Bety Orsini, naquela época no auge de uma coluna de culinária chegou…O carro que tínhamos era um Fiat Elba Amarelo, daqueles do Governo Collor, mas comprado com muito sacrifício. Minha mãe era gordinha e, portanto, odiava sol, calor e direção – como todo gordinho. Ao chegar ao restaurante esse rapaz, hoje dono, na época um menino que ainda carreia uma criança grande e boba. Avistou-a de longe e falou. “Bety, seu lugar está reservado – faça o favor de entrar”. Óbvio que minha mãe não ultrapassaria ninguém em uma fila, por isso pagava despachantes em algumas ocasiões, como no Detran. Não é a toa que andava com a carteira vencida por anos. “Não filho, não existe reserva para mim responde ela… vou esperar…mesmo reclamando do astro rei que queimara seu escalpo”. Ao final do almoço ofertaram-lhe uma cortesia e, indubitavelmente, receberam uma negação. Sempre fazia isso…
Ela sussurrou bem baixinho no ouvido dele: “Quando não tiver dinheiro não venho, mas não aceito isso”. Muitas pessoas usam de suas funções e substratos humanos para driblar o que de mais importante existe na vida – a empatia, o bom-senso, o olhar para o outro e o ser correto – sem “falarias” pelo status. Esse um dia será roído pelas traças. As traças são crudelíssimas. Acho que por isso não vou à encontros médicos bancados por laboratórios. Não me sinto bem. O único que eventualmente me tira de casa é o Pedro Nery, chamado com carinho por mim de Drive Thru da depressão. Nós sabemos o que significa. Essa semana dei um presente para o Léo, um amigo e representante de medicamentos. Agradeci o suporte que ele e outras empresas, como a que Felipe trabalha, me ajudam nos remédios para a população de baixa renda. Esses sabem o quanto sou linha dura. Não aceito escrever pagando, não tem permuta, não tem jantar. Aceito remédios para os menos favorecidos- ponto. Vou deixando em casas e casas- com a ajuda desses.
A coisa mais importante da vida é valorizar o outro – fica essa a mensagem. O calor humano falta em tudo, além do contato direto com as pessoas. E isso, não foi tirado pela Pandemia – foi paulatinamente plantado por nós e retirado por nós. Outrora éramos Homo Sapiens, hoje Bos Taurus.
De repente, como um achado dentro de um diagnóstico clinico, minha intolerância ou mesmo tolerância sobrou um pouco para mim também. Qual o prazo de tempo eu não sei – espero que seja breve. Nessas horas nos colocamos em dia com o auto-perdão. Não sei como chegar de modo literário à questões sociais e, de sobremaneira, apontar achados interessantes para meus amigos e alunos que perpassam os livros topográficos. Isso não é narcisismo – é dificuldade minha – incapacidade em gerir minhas vontades como professor. Desde que me conheço essas questões sociais sempre representaram mais que minha própria vida. Nunca fiz um sombreado das coisas que penso e escrevo.
Eu queria dedicar essa crônica para uma Escola que permitiu-me entender um pouco mais o socialismo. Nela tive a oportunidade de aprender, de cabeça derreada, sem pestanejar, sem criticar, assuntos que entrelaçavam literatura, história, medicina e neurologia. Foram quase 12 anos ao lado do Professor Marcos RG de Freitas e outros formadores como Marco Antônio Araujo Leite. Essa escola, se tenho permissão de personificar e extrapolar erros semânticos, serviu para extrair coisas que jamais irei permitir que façam com os outros – em contrapartida – foi alicerce para toda a minha formação intelectual e humana, mesmo que algumas vezes não democrática. Uma escola que tenho um carinho enorme. Faz parte de mim- de alguma forma – mas esse ciclo fechou se como uma tartaruga acuada. Lá as coisas ficaram- não existe espaço para mim; exceto a amizade de Araújo, meu grande irmão do coração.
E quanto ao dono da loja de bolinhos de bacalhau? Tínhamos esquecido do sacana, no bom sentido da palavra, uma gíria de malando, tipo Martinho da Vila. Nós não precisamos esquentar nossos neurônios e transformar problemas inerentes da vida e da conduta em redes neurais combalidas por erros inatos de DNA. Curtos impuros como de pessoas que valorizam a estampa, não os seres humanos. Queria dedicar essa crônica ao Bento Orsini, meu filhotinho caçula que faz aniversário dia 03 de janeiro. Assim como o João, Bentinho é muito mais que um ser humano – trato os como presentes de Deus. Que papai do céu abençoe e dê saúde para vocês. Amor do Papai.