Tenho uma grande mania de observar todos os pacientes de minha sala de espera. Um olhar sorrateiro, ladeado, perspicaz e farejador, muitas vezes pode nos dar pistas sobre as hipóteses em diagnósticos. O olhar, o balanceio dos braços, o timbre da voz e alguns maneirismos direcionam o nosso córtex. Existe um ditado que diz: “O diabo se esconde nos detalhes”. Então, creio eu, que devamos nos antecipar dentro desse labirinto de interrogações.
Semana passada perguntei de forma bem sutil para uma aluna, qual o possível diagnóstico para uma senhora apequenada, atordoada e dobrando inúmeras vezes um pedacinho de papel. Dobrou tanto, que ao final tentava espremer a folha. O olhar estava distante, bem longe dali, em um mundo criado por ela. Provavelmente o novo mundo dela. Um mundo que devemos escutar, respeitar e aceitar.
Os alunos de hoje são complicados. Algumas vezes reagem com “hostilidade” e não aceitam ingênuas provocações acadêmicas. A crítica, o inconformismo e perseverança podem, em alguns casos, prevalecer sobre o dom. O ego pode, somado a tais características ser o único adjetivo capaz de frear ou modificar o ser humano. O ego e o narcisismo são os piores atributos que um médico pode carrear em sua bagagem. Obviamente todos nós, algumas vezes, já tivemos algum devaneio de acharmos que somos soberanos; algumas vezes o erro é oriundo daí. Muitas vezes, na maioria, quase sempre…
Voltando ao assunto da interna, perguntei-lhe: “filha, o que você acha que aquela senhorita na sala de espera; aquela na poltrona defronte, atrás dessa parede, apresenta do ponto de vista neurológico”. Obviamente ninguém que ainda está por ser atendido é reparado; esse é o primeiro erro. Ainda brinquei com a jovem: “saia de fininho, fique com os neurônios atentos e traga-me uma possibilidade”. O jovem é fogo. Ele chega direto na família e pergunta o que os trouxe até a minha pessoa. Não sabem jogar…trapaceiam… algumas vezes escutam que o Uber, os próprios pés, os trouxeram até o consultório. Risos.
A interna, com a máscara de proteção escondendo seu semblante me responde: “Marco, já sei, ela teve um derrame cerebral”. Fora novamente questionada: “filha, o que chamou sua atenção para a possibilidade de um derrame cerebral ao visualizar a senhorita?” “Nada, eu perguntei para a família”. Jovem é novamente irredutível. Não era a minha primeira hipótese diagnóstica, por detrás da parede e somente com um olhar rápido ao adentrar no consultório. Apostaria todo o meu dinheiro num quadro demencial, mesmo sabendo que existem as demências oriundas de isquemias cerebrais.
Em resumo, tratava-se de um quadro clínico, típico de Doença de Alzheimer, sem eventos vasculares dignos de nota, os corriqueiros derrames cerebrais. Na vida temos que aprender a observar, aprender a reconhecer, aprender o quão diminuto somos de conhecimento e de sobremaneira, que necessitamos andar em pares.
Tive a grande felicidade de ficar quase uma década ao lado dos Professores Marcos RG de Freitas e Marco Antônio Araújo Leite. O primeiro dispensa qualquer tipo de comentário – é alguém que fora inventado para fornecer diagnóstico. Ele era rude. Certa vez corrigiu meu próprio idioma na frente de inúmeros residentes. Não sei o porquê usei a expressão “ela tinha”, ao referir-me à presença de achados do exame neurológico. Fui interpelado por Marcos na frente de muita gente, gente demais. “Orsini, “ela tinha” é o mesmo que uma lata pequenininha. Ele sorria com a brincadeira e eu, envergonhado, estudava para evitar danos futuros. Assim se foram, perduram e somam-se mais anos ao lado dele… sempre aprendendo, mas agora com alguns pontos e vírgulas. Eu o amo muito.
Quanto ao Marco Antônio Araújo Leite existe sempre um coelho na cartola de seu paletó, que é retirado meio que do nada. Um ovo de Colombo, que emerge ao apagar das discussões. Ele é afável, possivelmente por ter “sofrido” também na mão de Marcos, que não era um carrasco, era um Educador, sem detalhes, sem poda, sem limites.
Queria dedicar essa Crônica para um grande Neurocirurgião, o Professor João Márcio. Queria também deixar um carinho para o Professor José Hermógenes Rocco Suassuna, meu Médico. Deparamo-nos com frequência discutindo questões várias, que algumas vezes não chegam a lugar nenhum… isso é bom. O infinito. Dedico essa Crônica também, para essa emburrada jovem que possui potencial, muito potencial, mas derrapa ainda nas marcas da adolescência. Ao Pedro Morales não preciso agradecer sempre…você já sabe não é? Um beijo na Marina. Tia Elinha, obrigado.