Parecia um texto despretensioso pelo tempo dedicado; soava como algo vazio. Já com os pulmões tomados e com oxigenação deteriorada, minha mãe fazia questão de seguir com o seu dom até o final. Embora a hipóxia atrapalha-se de sobremaneira de andar, suas idéias pareciam estar mais afloradas do que nunca.
Momento antes de sua partida literalmente arrastou-se até o escritório e inclinou-se diante da tela do computador. Em seguida chamou-me: “Marco, você poderia conferir o meu texto? Veja, por favor, se possui erros”. Até hoje não entendo por que nunca chorei na frente dela e jamais lia os seus laudos. Acho que na verdade desprezei a morte, sabia que ela vinha buscá-la, entretanto convivi-a de forma sincrônica com ela. Ao pegar o texto de minha mãe e realizar uma breve leitura fiz-lhe um questionamento. “Mãe, você já revisou o texto agora, está lindo”. Para a minha surpresa o material por mim saboreado estava fresco, pois fora confeccionado por seu encéfalo em menos de 10 minutos.
Corrigir ou mesmo ousar a procurar erros em textos da Bety Orsini é similar a questionar o professor Marcos RG de Freitas em suas especulações e faro de diagnóstico – não é possível. Pessoas com essas habilidades devem ser colocadas num espaço bem nobre, pois são espelhos para crescermos profissionalmente e culturalmente. Recebo perguntas se tenho desejo de parecer-me com a minha mãe e tornar-me um médico igual ao professor Marcos. É óbvio que não tenho- qual seria a graça em não ter ninguém com mais conteúdo que eu. Em se tratando de conteúdo, minha aluna Nicolle Nunes disse que queria ser uma médica igual a mim. Sorri e disse. “Filha, a função de um educador é ter alunos que o ultrapassem – isso seria o meu maior presente”. É óbvio que ultrapassar o Marcos Freitas não será possível, mas já é um presente o mesmo ter-me considerado um médico dedicado – eu tento.
Tentei me lembrar dos muitos professores maravilhosos que tivera e esperei desenvolver algumas habilidades deles, além de sua presença autêntica. Ao anoitecer conversei com o atual Chefe da Pós-Graduação em Neurologia da UFF, um grande amigo e neurologista humanista, Marco Antônio Araújo Leite. Um médico que certamente todos gostariam de receber seus dotes, principalmente aqueles com desordens do movimento, tipo Doença de Parkinson. Intitulei-o de Chefe para poder rir por dentro; sei que esse rótulo irá deixá-lo uma fera comigo. Falamos muito sobre marxismo, capitães do mato, senhores de engenhos, homofobia, xenofobia. Marco me perguntou se era realmente um socialista cientifico – afirmei que sim, mas muito temeroso.
Debruçamos sobre os celulares e discutimos sobre Marx, Engels e outros. Fico muito feliz em conversar e aprender com gente disposta a educar. Realmente o capitalismo deveria acabar para o socialismo florir. Infelizmente o Brasil sempre foi cruel com pobres, negros, mulheres, índios e enfermos. Essa estória que vivemos num país formidável é verdade, excluindo uma boa parte do nosso povo. Existem senzalas silenciosas, trabalho escravo, estupro de vulneráveis, agressão contra homossexuais e, de sobremaneira, muito desamor.
Vou terminar essa crônica para atender pacientes e, posteriormente, assistir ao filme Reds e ler um livro intitulado Carbonários – indicação do Marcão.
Quanto à minha mãe, acho uma perda irreparável sua ausência. Ela transformava com palavras um Brasil sujo em esperança. Dizia ser um local lindo, mesmo sendo desordenado. Era simpaticíssima, simples, vestida com modéstia, bem mais bonita a luz do dia. Tive a chance de conhecê-la por dentro e por fora.
Dedico essa crônica ao meu pai e meus professores Marcos Freitas, Marco Antônio Araujo Leite, Jano Alves de Souza, Gilvan Muzzi, Olimpio Peçanha, Luis Mauricio Ramos, Anamaria Testa Tambellini e Carlos Henrique Melo Reis. Também mando um abraço forte para Fernando Miguleto e Brodsky – amigos do bem. E também a minha avó, que hoje completa 94 anos. Muito feliz por você morar comigo e ser um retrato da caridade. Te amamos- Marco, João e Bento.