Eu teria todos os motivos para começar essa crônica afirmando que estamos passando por um momento de incertezas – tipo aquele velho jargão de cada um por si e Deus por todos. Com as relações cada vez menos compactas, mais superficiais e “desconectadas”, observo um abismo entre as amizades\relacionamentos reais e enganosos.
Na contramão desse processo, aqueles que pareciam “distantes” de nossas vidas aproximam-se com lembranças de infância, sorrisos, zelo, ligações de vídeo e boas ações. Como médico e pai de dois filhos ainda não me adaptei aos contatos líquidos e ao “descarte” daquilo que momentaneamente não faz diferença (a vida do outro).
Hoje é muito fácil trocar, substituir, silenciar e desprezar pessoas. Num mundo cada vez mais volátil, virtual, arrogante e de aparências, muita gente se perdeu. Não sabem mais amar, valorizar, contribuir, ofertar.
Faço uma metáfora aos castelos de areia, que se destroem ao primeiro vendaval. O romantismo dessa palavra chamada amor é, na esmagadora maioria dos casos, atropelado por noites descompromissadas ou futilidades bestiais.
A pandemia, infelizmente, será um divisor no que tange a real versão da palavra parceria. Uma vez perguntaram-me quantos amigos eu possuía? De pronto respondi que eram poucos e não cabiam em minhas mãos, mas que estava extremamente satisfeito.
Essa crônica não possui uma visão obscura. Não é porque estamos observando uma espécie de mundo paralelo que devemos fazer parte dele. Temos oportunidade de crias laços de maior afetividade, romantismo e quem sabe resgatar o que deixamos no meio do caminho – algo guardadinho no fundo do coração. Todos podemos fazer uma autocrítica sobre tais comportamentos. Se relacionar, no cerne da palavra, virou uma espécie de alimento perecível.
Particularmente, sinto-me abençoado por ter amigos tão especiais. Percebo que não são as belas coisas ou pessoas que marcam as nossas vidas, mas aquelas que têm o dom de jamais serem esquecidas em nossos corações. Quanto ao isolamento social é notório que já estamos isolados uns dos outros por um bom tempo; não um isolamento físico, mas um isolamento espiritual. O comportamento gregário do ser humano me parece uma imposição do instinto, mas que pode ser melhor contornado, principalmente nos momentos de sobrevivência, com princípios do Iluminismo.
Precisamos parar e achar um tempinho, deixar algumas atribuições e ceder com afeto ao outro, que de alguma forma está precisando de algo que está dentro de nós. É preciso ter coragem para entrar em contato e enfrentar a dor do outro. Quem não enfrenta a dor de um amigo não está preparado espiritualmente. Parece que perdemos a noção de por onde começar e de como mudar o que já está estabelecido em nossa cultura.
Gostaria de dedicar essa crônica para meus filhos João e Bento Orsini e algumas pessoas que moram no fundo do meu coração – Eduardo Paranhos, Eduardo e Vinicius Gahyva e minhas queridas amigas Isadora Ribeiro (mãe do Arthur) e Tatiana Patrício (mãe de Caio e Lara). Ao escrever tais crônicas é inevitável não lembrar da Bety Orsini – uma mãe sensacional.